Companhias para um capuccino

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Cada um dá o que pode.

Com barro, sangue e um panfleto de liquidação sobre as fuças, estava debruçado o desconhecido, em frente ao boteco do Mané Preto, na esquina da rua oito com a principal.

A comunidade já estava acostumada ao barro e a outros diversos incidentes causados pelos problemas de escoamento. Inclusive, o próprio Mané Preto, por conta do alagamento que ocorrera dias antes desse despacho, tinha perdido a geladeira nova que lhe acumulara dívida para mais de um ano.

O tal presunto é que era coisa fresca na favela.

Naquela segunda-feira, "dia de branco" - como reza a oração da burguesia -, pouco demorou para que toda gente da vizinhança se achegasse ao desgraçado.

E a lotação, que costumava sair do bairro abarrotada de marmiteiros, pedreiros, engraxates, bicheiros, cafetões, putas, diaristas e catadores de cobre, alumínio e papelão, levou só meia dúzia de mercenários - daqueles que não estampam qualquer consideração pelo próximo - sem fé no principal mandamento do Nosso Senhor Jesus Cristinho.

A maioria, comovida e indignada, ficou para prestar homenagem de muita reza e lágrima.

As beatas se prontificaram rapidamente. Esfregavam compulsivas os seus terços ensebados por entre os dedos, rezando decorados Padre-Nossos e Ave-Marias; o mutirão acompanhava.

De frente para a reza, nas banquetas do boteco, homens bebiam o defunto pela conta do Mané Preto, e conversavam a vida, e matavam a vida.

Cada um dos presentes, tão desgraçado quanto o indigente, colaborava com o que podia. Afinal, até mesmo o tal, que imóvel e debruçado nada fazia, colaborara morrendo.

3 comentários:

Aglio disse...

A morte...

Coincidentemente ou não, hoje foi um dia no qual convivi com um pouco dela.

E, coincidentemnte ou não, eu comecei a formular hipóteses parecidas desse porquê de se viver, que é menos exato do que o porquê de se morrer.

Então eu leio você. Engraçado, Tato, não existem coincidências, apenas o inevitável em todas suas peripécias - na vida, na morte, na leitura ou na consolidação da expressão artístico-litearária do indivíduo.

Fico feliz por passar cada uma dessas ao seu lado, amigo meu.

Unknown disse...

Xô mandar-lhe uma pergunta:
qual sua relação com as "favelas"?
Eu dou aula, de noite, na periferia.

Tento não ser um mercenário,
mas não me importo
de ser tão indigente
quanto o Mané Preto.

VERSOS & VÍCIOS - oráculo novo disse...

Mais uma vez meu querido vc não minoriza a vida e sim o que excede dela, aquilo que soberja, vc faz o recorte literário, o âmbito do sentimento malandro e não o lugar do malandro, a conversa de malando identificada na categoria do ser, do intimo de ser, malandro.

Grande Clayton!