Companhias para um capuccino

domingo, 15 de maio de 2011

Desgraça por desgraça

O farfalhar do escombro de portão amarrado de arame alertava Zoraide de que mais uma vez o Ramiro passara da conta, bebera o mundo no fiado, quem sabe arrumara confusão com um ou outro vagabundo, quem sabe transara com uma qualquer. Era isso há cinco anos. Aliás, naquela data, exatos cinco anos de casamento às surras que a aconselhavam fingir o sono profundo que enganaria até mesmo o diabo.

E antes fosse o diabo, todos os dias, a entrar pela cozinha, a abrir de supetão a porta do quarto, a deitar-se na cama, sujo e fétido, e a procurá-la com as obscenidades costumeiras, cheias de língua, apertos e beliscões, como se a pobre pecadora fosse tão somente mais uma vagabunda, uma cadela sempre no cio, disposta a abrir suas pernas a todo o momento em que o macho a quisesse penetrar.

Entretanto, um sabido ditado da favela do Capão, a mesma em que morava o distinto casal, rezava e ainda reza que todo desgraçado, num determinado momento da vida - se é que se pode chamar de vida a existência dum desgraçado -, esgota-se da desgraça, deixa de lado o conselho e o "de costume" para ousar, para des-gra-çar.

E naquela noite, tão especial aquela noite, a confirmação da sabedoria popular estava para se dar na trepada que aguardava por Ramiro. É que Zoraide, esgotada da desgraça, ignorara o conselho, o sono fingido, e preparara tudo, linda e diferente, disposta num lingerie de anos atrás. As pernas à mostra, coxas e panturrilhas ainda torneadas do tempo em que trabalhara na rua, os seios arfantes quase que saltando do sutiã, os mesmos que já fizeram muito pagador se afogar em saliva, e a bunda, uma lua negra e exageradamente redonda que cintilava na meia luz do quarto, configuravam, melhores do que balões, bebidas e viagens, a comemoração, a surpresa para o diabão. Pois, no fundo, ela sabia tudo o que aquele homem queria e já não tinha fé e rogo de ver.

De fato, ao entrar, Ramiro não pôde com o que viu. Sem hesitar, atirou-se, incauto e previsível, no calor da cama, no fogo castanho dos olhos de Zoraide. Extraordinária, fora ela quem preparara o inferno naquela noite, tão endiabrada que planejara não permitir sequer o desfrute pleno do festejo ao seu convidado. Egoísta, a desgraçada comemorara antes e por último; comemorara sozinha, linda e diferente. Isso porque, com a faca deixada por debaixo do travesseiro, precedera a gozada do satanás com três golpes fulminantes em seu peito, fazendo-o urrar feito um porco no abate.

Finda a festa, Ramiro tombara de lado e ela, deitada, gargalhou comprido ao ver que, em seu ventre, em vez de porra, espirrara sangue.