Com barro, sangue e um panfleto de liquidação sobre as fuças, estava debruçado o desconhecido, em frente ao boteco do Mané Preto, na esquina da rua oito com a principal.
A comunidade já estava acostumada ao barro e a outros diversos incidentes causados pelos problemas de escoamento. Inclusive, o próprio Mané Preto, por conta do alagamento que ocorrera dias antes desse despacho, tinha perdido a geladeira nova que lhe acumulara dívida para mais de um ano.
O tal presunto é que era coisa fresca na favela.
Naquela segunda-feira, "dia de branco" - como reza a oração da burguesia -, pouco demorou para que toda gente da vizinhança se achegasse ao desgraçado.
E a lotação, que costumava sair do bairro abarrotada de marmiteiros, pedreiros, engraxates, bicheiros, cafetões, putas, diaristas e catadores de cobre, alumínio e papelão, levou só meia dúzia de mercenários - daqueles que não estampam qualquer consideração pelo próximo - sem fé no principal mandamento do Nosso Senhor Jesus Cristinho.
A maioria, comovida e indignada, ficou para prestar homenagem de muita reza e lágrima.
As beatas se prontificaram rapidamente. Esfregavam compulsivas os seus terços ensebados por entre os dedos, rezando decorados Padre-Nossos e Ave-Marias; o mutirão acompanhava.
De frente para a reza, nas banquetas do boteco, homens bebiam o defunto pela conta do Mané Preto, e conversavam a vida, e matavam a vida.
Cada um dos presentes, tão desgraçado quanto o indigente, colaborava com o que podia. Afinal, até mesmo o tal, que imóvel e debruçado nada fazia, colaborara morrendo.