Companhias para um capuccino

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Jandira

Jandira ateou fogo em si mesma
Pobre de qualquer riqueza
Rica de toda pobreza

Queimou como dinheiro na mão capital do diabo
Mas comprou parte do inferno a partir de seu trabalho proletário
Diarista, puta e cafetina de si mesma
Fez grande investimento - porque lá é mais quente do que o Nordeste do Brasil, é verão o tempo todo e dá turista, como dá turista!

Jandira faz de um tudo para dar a volta por cima
Ela que nunca ficou por cima
Nem do marido
Nem dos amantes
Porque homem nenhum a incendiou como o litro de alcohol que despejou em seu corpo

Jandira gosta de queimar

Só não queima dinheiro
Que é mais difícil de ajuntar.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Exercício de humanidade

Explodiria a vida minha
Também a de outros
Com o caos da poesia
Minha
Também a de outros.

Tamanho seria o estrago
Muitos escombros
Muitos pedaços

Somente os corações pulsariam
Vigorosos
Inteiriços
Aludindo ao vivo esforço
infinito exercício
da humana existência.


terça-feira, 20 de setembro de 2011

Noturno

Saía à noite para além do portão eletrônico de seu prédio, contornava o bairro feito locomotiva, carburando mudos cigarros, e, para cada passo torto que arriscava nas calçadas esburacadas, dava-se ao desfrute de ouvir meia dúzia de batidas do seu coração. Eram suas rotinas, os passos noturnos e os batimentos cardíacos, e não sabia qual delas era a mais espontânea. Talvez não fosse uma nem outra. Quem sabe fosse o silêncio?

Não sabia. Isso porque, no apartamento, costumava falar. Descosturava a boca e tapava os ouvidos. Discutia com os móveis sobre perspectiva, a mesma que as paredes de seu quarto compunham no teto, em sutil conspiração. A cada momento, uma forma, uma fôrma a lhe moldar o espaço, a insônia.

E mesmo se dormia, era um sono de cabeça para baixo, relutante, fracionado, sem sonhos. Motivos até havia para sonhar, guardava um amor, calava um amor, mas não sonhava.

O relógio batia.

A torneira pingava.

A estante rangia.

O seu gato miava.

E desse mal dormir, desse não sonhar, morria de vida em todas as noites.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Eternit

Saiu para dançar muito bem vestida na noite bonita que cobria o nosso telhado maltrapilho. Eu fiquei. Fiquei porque me sabia careta, cara de indiferença a minha. Ela foi porque me sabia quadrado, cara de desimportância a dela. E a necessidade por reparos no telhado nos bastou como justificância.

De manhã, ao chegar, ela me disse sem culpa que havia perdido a hora porque achara um bom parceiro, um sujeito pedreiro, mas chorou feito não sei o quê ao constatar que a tal da minha justificativa para a solidão de uma noite era a mesma para se desculpar pelo erro da vida a dois inteira debaixo das telhas eternit.

domingo, 15 de maio de 2011

Desgraça por desgraça

O farfalhar do escombro de portão amarrado de arame alertava Zoraide de que mais uma vez o Ramiro passara da conta, bebera o mundo no fiado, quem sabe arrumara confusão com um ou outro vagabundo, quem sabe transara com uma qualquer. Era isso há cinco anos. Aliás, naquela data, exatos cinco anos de casamento às surras que a aconselhavam fingir o sono profundo que enganaria até mesmo o diabo.

E antes fosse o diabo, todos os dias, a entrar pela cozinha, a abrir de supetão a porta do quarto, a deitar-se na cama, sujo e fétido, e a procurá-la com as obscenidades costumeiras, cheias de língua, apertos e beliscões, como se a pobre pecadora fosse tão somente mais uma vagabunda, uma cadela sempre no cio, disposta a abrir suas pernas a todo o momento em que o macho a quisesse penetrar.

Entretanto, um sabido ditado da favela do Capão, a mesma em que morava o distinto casal, rezava e ainda reza que todo desgraçado, num determinado momento da vida - se é que se pode chamar de vida a existência dum desgraçado -, esgota-se da desgraça, deixa de lado o conselho e o "de costume" para ousar, para des-gra-çar.

E naquela noite, tão especial aquela noite, a confirmação da sabedoria popular estava para se dar na trepada que aguardava por Ramiro. É que Zoraide, esgotada da desgraça, ignorara o conselho, o sono fingido, e preparara tudo, linda e diferente, disposta num lingerie de anos atrás. As pernas à mostra, coxas e panturrilhas ainda torneadas do tempo em que trabalhara na rua, os seios arfantes quase que saltando do sutiã, os mesmos que já fizeram muito pagador se afogar em saliva, e a bunda, uma lua negra e exageradamente redonda que cintilava na meia luz do quarto, configuravam, melhores do que balões, bebidas e viagens, a comemoração, a surpresa para o diabão. Pois, no fundo, ela sabia tudo o que aquele homem queria e já não tinha fé e rogo de ver.

De fato, ao entrar, Ramiro não pôde com o que viu. Sem hesitar, atirou-se, incauto e previsível, no calor da cama, no fogo castanho dos olhos de Zoraide. Extraordinária, fora ela quem preparara o inferno naquela noite, tão endiabrada que planejara não permitir sequer o desfrute pleno do festejo ao seu convidado. Egoísta, a desgraçada comemorara antes e por último; comemorara sozinha, linda e diferente. Isso porque, com a faca deixada por debaixo do travesseiro, precedera a gozada do satanás com três golpes fulminantes em seu peito, fazendo-o urrar feito um porco no abate.

Finda a festa, Ramiro tombara de lado e ela, deitada, gargalhou comprido ao ver que, em seu ventre, em vez de porra, espirrara sangue.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Finesse

Eu falava de negócios quando ela cerrou os olhos e me calou com um beijo. De súbito, mais que seus lábios e língua adentrando, violando a minha boca, senti roçarem em meu peito os bicos dos seus seios, duros por promiscuidade ou ganância. Ela era tão menina, tão branca que decerto tinha mamilos rosados... só poderiam ser rosados.

Durante o jantar, as suas pernas entrelaçaram as minhas como naqueles filmes americanos de putaria moderada, causando-me uma ereção. E não é que a biscatinha me confirmou que cursava Artes Cênicas numa porra de faculdade qualquer? Dava pra coisa.

Pelo óbvio, transamos na mesma noite. E só não transamos onde estávamos porque o garçom rapazola era um puto, um pudico insubornável que não nos cedeu o toilette. Ademais, a comida, o vinho, o estacionamento, tudo me custou um olho da cara.

Devo dizer que nunca me precavi da jovialidade inconsequente. Muito pelo contrário! Atesto com pouca dignidade, todavia bastante orgulhoso, que gastei, ou melhor, investi o verde dos anos e do bolso na experiência com que hoje gozo a juventude alheia; molecas, ninfetas e o cacete!

Aliás, por falar em cacete, ao estacionar em frente à sua casa, aguardei o suficiente para vê-la entrar e beijar o seu pai com a mesma boca que usara para me chupar durante todo o trajeto de volta.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Psiu, é segredo!

Lá pelos antigamentes, quando chovia, eu achava que era o mundo que chorava. Por isso, escondido dos meus amigos, eu sorria bem grande para tentar alegrá-lo. Coisa de gente que se importa com o mundo, sabe?
Os meus amigos não sabiam, porque eram de muito sarro, tinham mania de espalhar pra turma do nosso bairro que fulano era mentiroso, que cicrano era loroteiro... Eu que não contava! Já pensou como eles iriam se rir de mim, se soubessem que a gente só voltava a bater bola no portão do Pedro porque o mundo adorava um sorriso?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Transe

Depois de transarmos sem grandes pretensões amorosas, estava ela defronte a janela do apartamento com ares de satisfação. E pela direção de seus olhos, parecia fitar a rua em que o meu carro havia sido estacionado; se não, o próprio carro.

Da cama, fiquei a tateá-la de vista por algum tempo. Penso que não a inibi com isso, pois ao se dar conta do que acontecia, sorriu permissiva e espreguiçou vagarosamente.

No entremeio desses vislumbres, a tarde parecia se esvair tão vagarosa quanto o espreguiçar. Deduzi pela luz castanha que aproveitava a janela aberta para sobrepor-se e cobrir boa parte do corpo dela, branco e longilíneo, desnudado frente a mim.

E como que se não nos bastasse essa invasão descarada do abajur vespertino, a quentura de todo um dia de verão intenso nos adentrava os poros afogados em suor, e tomava-nos o quarto.

Nós ficamos assim, aquecidos e acompanhados pela primeira vez e por algumas horas.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Abrasileirado

Verde ou amarelo
no canteiro
de terra brasilis
cantava
o sabiá-laranjeira
duma verde bananeira
de maneira patriota

Ele era patriota

e morreu de patriota
que era.

Infeliz

por ver a verde nota
comprar amarelo alqueire
se ajuntou com os Sem Terra
pediu por reforma agrária
sem enxada
com a fé de brasileiro.

Ele era brasileiro

e morreu de brasileiro
que era.

Ensanguentado
do tiro certeiro
que a espingarda enferrujada
de um amarelo fazendeiro
disparara
sem trégua
para a verde bananeira.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Cada um dá o que pode.

Com barro, sangue e um panfleto de liquidação sobre as fuças, estava debruçado o desconhecido, em frente ao boteco do Mané Preto, na esquina da rua oito com a principal.

A comunidade já estava acostumada ao barro e a outros diversos incidentes causados pelos problemas de escoamento. Inclusive, o próprio Mané Preto, por conta do alagamento que ocorrera dias antes desse despacho, tinha perdido a geladeira nova que lhe acumulara dívida para mais de um ano.

O tal presunto é que era coisa fresca na favela.

Naquela segunda-feira, "dia de branco" - como reza a oração da burguesia -, pouco demorou para que toda gente da vizinhança se achegasse ao desgraçado.

E a lotação, que costumava sair do bairro abarrotada de marmiteiros, pedreiros, engraxates, bicheiros, cafetões, putas, diaristas e catadores de cobre, alumínio e papelão, levou só meia dúzia de mercenários - daqueles que não estampam qualquer consideração pelo próximo - sem fé no principal mandamento do Nosso Senhor Jesus Cristinho.

A maioria, comovida e indignada, ficou para prestar homenagem de muita reza e lágrima.

As beatas se prontificaram rapidamente. Esfregavam compulsivas os seus terços ensebados por entre os dedos, rezando decorados Padre-Nossos e Ave-Marias; o mutirão acompanhava.

De frente para a reza, nas banquetas do boteco, homens bebiam o defunto pela conta do Mané Preto, e conversavam a vida, e matavam a vida.

Cada um dos presentes, tão desgraçado quanto o indigente, colaborava com o que podia. Afinal, até mesmo o tal, que imóvel e debruçado nada fazia, colaborara morrendo.